No outro dia numa aula, em que se falava de cadeias alimentares, fiquei com a impressão que estávamos a falar de algo que aquelas crianças, que tinha na minha frente, nunca tinham visto: galinhas, no campo ou numa capoeira, a esgravatar na terra à procura de vermes ou minhocas, ou a debicar folhas de couves, ou grãos de milho, ...
«Há muitos anos, lembro-me bem, ainda brincávamos na rua, melhor dizendo, ainda brincávamos. É certo que muitos de nós não tiveram grande tempo para brincar, logo de pequenos ficaram grandes. Não tínhamos muitos brinquedos, mas tínhamos um tempo e um espaço onde cabiam todas as brincadeiras, quase sempre na rua.
Entretanto, chegaram outros tempos. Tempos que, para
além das mudanças muito significativas nos estilos de vida das
famílias, também parecem estar a criar outras ideias sobre o brincar e
as brincadeiras. As questões relativas à segurança, obviamente
importantes, não chegam para explicar a razão pela qual as famílias
portuguesas usam tão pouco tempo em actividades de ar livre ainda que o
clima seja favorável boa parte do ano. Aliás, nos países nórdicos,
apesar das diferenças climáticas, verificam-se os níveis mais altos de
actividades ao ar livre com implicações positivas na qualidade de vida,
nas suas várias dimensões, de miúdos e crescidos.
Embora
consciente, repito, das questões como risco, segurança e estilos de vida
das famílias, creio que seria possível tentar “devolver” os miúdos ao
circular e brincar na rua. Talvez com a colaboração de tantos velhos que
estão sozinhos, alguns morrem mesmo de "sozinhismo", as comunidades e
as famílias conseguissem algumas oportunidades para ter as crianças por
algum tempo fora das paredes de uma casa, da escola, do centro
comercial, do banco de trás do automóvel, do ecrã ou dos “espaços
estereotipados” que o mercado criou.No imperdível O Mundo, o mundo é a rua da tua infância, Juan José Millás recorda-nos como a rua, a nossa rua foi o princípio do nosso mundo e nos marca. Quantas histórias e experiências muitos de nós carregamos vindas do brincar e andar na rua e que contribuíram de formas diferentes para aquilo que somos e de que gostamos.
Como muitas vezes tenho escrito e afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala Almada Negreiros. A rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente), os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.
Talvez, devagarinho e com os riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por pouco tempo e não todos os dias.
Eles iriam gostar e far-lhes-ia bem.
Por outro lado, ao que parece, afirmam alguns que não percebem de miúdos, os tempos não são de brincar, são de trabalhar, trabalhar muito, em nome da competitividade e da produtividade, condição para a felicidade, entendem. Roubaram aos miúdos o tempo e o espaço que nós tínhamos e empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois, só assim, serão grandes a sério, evidentemente.
Às vezes, alguns miúdos ainda brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase clandestina que só pais, educadores ou professores “românticos” e “incompetentes” acham importante.
Muitos outros miúdos vão para umas coisas a que chamam “tempos livres”, que, em algumas circunstâncias, de livres têm pouco e onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes, acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.
Também são encaixados em dezenas de actividades "fantásticas", com designações "fantásticas", que promovem competências "fantásticas" e fazem um bem "fantástico" a tudo e mais alguma coisa. A vida de alguns miúdos transforma-se numa espécie de sobrecarregada agenda cujas vantagens serão poucas e os riscos são de considerar.
Era bom escutar os miúdos.
Na verdade, se perguntarem aos miúdos, vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que eles fazem, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser.»
O autor é professor universitário no ISPA - Instituto Universitário
In PÚBLICO, 14/05/2014: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/brincar-e-a-actividade-mais-seria-que-as-criancas-fazem-1635872
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