terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O Carnaval na escola: ... ou quando se impede as crianças de brincar ao "faz de conta"

As nossas vidas andam mesmo difíceis ... só isso ajuda a compreender as razões que levam pais e mães a arranjarem todas as desculpas possíveis e imaginárias para impedir que os seus filhos e filhas participem num momento de festa, de brincadeira, de alegria, de vida coletiva na escola: os festejos de Carnaval.

A grande maioria das crianças portuguesas passa habitualmente cerca de (pelo menos) 42h30 (sim, quarenta e duas horas e meia) por semana na escola, ou seja, 8h30 (pelo menos) por dia útil da semana. Dessas 42h30 semanais, 5h são passadas em intervalos de 30 minutos (dois por dia) e outras 7h30 são nos recreios de almoço, nos quais se inclui o tempo necessário à refeição.

Se uma criança, entre os 5 e os 10 anos, estiver 14h acordada por dia, isto quer dizer que nos dias úteis ela passa cerca de 60% do tempo em que está desperta na escola.

Mesmo considerando os fins de semana, e partindo do princípio que aí se mantêm o mesmo número de horas em que as crianças estão acordadas, a grande maioria das crianças em idade escolar passa, no mínimo, cerca de 43% da sua vida na escola.

Será a questão da vestimenta uma desculpa razoável para a não participação nestes festejos, quando a maior parte das professoras e professores que conheço, se dispõem a colaborar e ajudar na construção de adereços? Quando existem mesmo outros pais e mães dispostos a colaborar também?

Há quem tenha medo do ridículo, quem tenha medo de se sentir ridicularizado a desfilar mascarado ... Não será esta uma excelente oportunidade para ultrapassar esses medos, num desfile em grupo, em que todos participam mascarados?

O que levará então os pais a impedir que os seus filhos, ou filhas, participem numa festa da escola, no âmbito do espaço de socialização cultural, um espaço de convívio com os amigos e com os adultos que os acompanham no dia a dia, com quem passam tanto tempo das suas vidas? O que os levará a não se organizarem para que os seus filhos participem numa brincadeira, que é uma tradição cultural da sociedade em que vivemos, gastando o menos dinheiro possível?

Será que pensam que a escola é apenas para aprender "a ler, a escrever e a contar", no sentido mais redutor dessas aprendizagens? (há quem pergunte se há faltas nestes dias ... :-) ...)

Para que aprendemos "a ler, a escrever e a contar" se não for para nos integrarmos socialmente, para participarmos na vida da comunidade (seja ela qual for)? Para percebermos melhor o mundo que nos rodeia, seja em que idade for? Nem os atuais currículos oficiais do Ministério da Educação e Ciência, os programas, se limitam já ao "ler, escrever e contar" de outros tempos, de má memória (apesar do enorme retrocesso que as últimas alterações políticas introduzidas apontarem nessa direção). Mesmo que assim fosse, por aquilo que as crianças observam fora da escola, quer nos mass media, quer através do contacto com da vida dos mais velhos e dos adultos, não é mais possível ficarmos, enquanto educadores e enquanto professores, parados no tempo, a treinar, a treinar ...

Sobre o que "leremos, escreveremos ou contaremos" se não aprendermos, desde a mais tenra idade, que podemos escrever com prazer, sobre o que nos dá alegria, sobre o que mais gostamos e amamos, e que isso pode ser partilhado com outros? Escrever, segundo vários autores e investigadores, é dominar um código muitíssimo valorizado socialmente, mesmo no mundo tecnológico em vivemos; é aprender a "ter voz" própria, para se poder expressar, para que outros (os mais próximos e os mais distantes) possam  "ouvir" o que pensamos, o que nos vai na alma: as nossas alegrias, mas também as nossas tristezas, os nossos descontentamentos e as nossas revoltas.

Para além da função social das aprendizagens escolares, como promover "o treino" sem a dimensão afetiva, emocional e social, de partilha e de relação com os outros (neste caso concreto os colegas)? Sem participar nas atividades festivas do grupo a que se pertence todos os dias da semana, tantas horas por semana?

Para além do treino das técnicas da escrita e da leitura, dos algoritmos (das contas), do raciocínio lógico-matemático, há nas aprendizagens escolares outras inegáveis componentes de treino (e aprendizagens) em domínios outros, tão ou mais importantes que os anteriores, como o da compreensão individual da tarefa pedida ou a resolver, a concentração na resolução e execução da tarefa. Todos sabemos o esforço que é necessário fazer para resolver uma tarefa individualmente. Todos sabemos também que estaremos mais dispostos a fazer esse esforço, a vencer os obstáculos inerentes, se soubermos que no final teremos um resultado interessante para partilhar e mostrar aos outros (colegas, professores, pais e comunidade escolar envolvente) - é este a função social da escola, a de ir construindo (literalmente) as aprendizagens escolares num ambiente cultural mais alargado e estimulante. É por isso que há quem diga que, mesmo quando lemos ou escrevemos individualmente, que os outros estão sempre presentes, a nosso lado, quer como autores, quer como audiência, respetivamente - sem qualquer espécie de misticismo ou de esoterismo.

Não se pode negar a dimensão individualista da sociedade ocidental na atualidade, como também não se pode negar a dimensão social e grupal das nossas vidas, da nossa aprendizagem enquanto seres humanos. É indispensável que ambas estejam presentes nos processos educativos e de aprendizagem hoje.

As aprendizagens escolares (incluindo o treino) só ganham toda a sua pertinência quando integradas num contexto cultural mais amplo, no qual se incluem naturalmente os festejos carnavalescos (ou não fizessem eles parte da nossa herança cultural judaico-cristã).

Todos sabemos como os jogos, as brincadeiras do "faz de conta", são essenciais a um desenvolvimento e crescimento (o mais) harmonioso (possível) de todas crianças. O brincar, associado por excelência ao "faz de conta", ainda hoje, nos dá um enorme prazer e alegria, apesar de sermos já adultos autónomos e responsáveis. Não há uma pedagogia para as crianças e outra para os adultos, como não há uma para os cegos e outra para os visuais, como dizia Maria Amália Borges de Medeiros (fundadora do Centro Infantil Hellen Keller): «A pedagogia é só uma!"

Como vão os pais dos alunos que não estiveram presentes nos festejos carnavalescos explicar-lhes as razões que os impediram de participar em "brincadeiras" tão ricas e estimulantes como esta: http://aviagemcomaluz.blogspot.pt/2015/02/carnaval-depois-do-desfile.html. Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, que certamente aconteceram por esse país fora.

 

Nota 1: É uma declaração de princípios, de resiliência - resistirei até ao limite das minhas forças em tornar a minha sala de aula num ambiente descontextualizado e acético de "treino", pelo respeito que tenho pelos meus alunos, pelos seus pais e por mim própria.

Nota 2: Fica aqui o link para outros posts sobre a forma como vivi o Carnaval com os meus alunos - http://aviagemcomaluz.blogspot.pt/search/label/Carnaval


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