In PÚBLICO, 10/12/2013
1. O momento, hoje, não era dos cínicos, avisou Obama. Ele
próprio recuperou a sua dimensão histórica, ensombrada ou esquecida
pelas vicissitudes próprias de quem governa o país mais poderoso do
mundo. Nenhum outro Presidente americano poderia ter estado ali, naquele
estádio onde o mundo se despediu de Mandela, com a distinção que lhe
foi concedida. Obama não seria o que é sem a figura inspiradora de um
homem que foi capaz de estender a mão aos inimigos e tornar-se, ao
fazê-lo, um exemplo que a humanidade abraçou.
A mão que Madiba estendeu a Frederik De Klerk não teria, porventura,
sido apertada, se outro homem, antes dele, não tivesse tido a coragem de
“descongelar” o mundo. Talvez apenas Gorbatchov se possa comparar com
ele. O que os dois fizeram, por caminhos distintos, foi alterar o curso
normal da História, impedindo que a queda do império soviético e o fim
do apartheid conduzissem a um banho de sangue. Ninguém como
eles, nos anos finais do seculo XX, provou até que ponto um homem pode
alterar o rumo inevitável dos acontecimentos. Churchill e Roosevelt
foram “gigantes políticos” mas o mundo em que viveram apenas considerava
metade da humanidade. A única homenagem fúnebre que reuniu um número
semelhante de figuras mundiais foi, provavelmente, a que foi prestada a
João Paulo II, o primeiro Papa universal que, um dia, desafiou os
polacos a “não terem medo”, desferindo o primeiro golpe sobre a “cortina
de ferro” e provando que as ideias podem ser mais fortes do que o mais
poderoso dos exércitos. Foram precisos outros homens extraordinários,
para além de Mandela, para percorrer o caminho que levou o mundo inteiro
ao Soweto – o lugar improvável que simbolizou durante décadas a
resistência a um dos regimes mais odiosos que o século XX conheceu para
que, hoje, se transformasse no símbolo da “humanidade comum” que Obama
prometeu e que Mandela encarnou.
2. Foi também preciso que a América tivesse o arrojo
de eleger por duas vezes um Presidente negro para que Obama fosse hoje,
no Soweto, o orador mais aclamado. Foi ele que pronunciou o discurso
mais político, impedindo que as belas palavras de homenagem ao herói da
sua juventude escondessem a realidade de um mundo que ainda está pleno
de injustiça, de violência e de caos. “Demasiados líderes dizem-se
solidários com Mandela, mas não toleram a dissidência no seu próprio
povo”. Havia, certamente, alguns na tribuna de onde falou. Obama
homenageou o homem para quem os seres humanos eram todos iguais. O homem
que estendeu a mão aos carcereiros, conseguindo o milagre de
transformar um regime odioso numa democracia.
Dilma, a antiga guerrilheira contra a ditadura militar que lidera hoje
uma potência em ascensão, lembrou que “as suas raízes também estão em
África”. A Presidente do Brasil, o seu homólogo indiano e o
vice-Presidente chinês tiveram direito à palavra e ao aplauso mais por
aquilo que representam do que pelos discursos de circunstância que
fizeram. A África do Sul é hoje o S que foi acrescentado aos BRIC. Os
sul-africanos conhecem-nos porque são os representantes de um outro
mundo a que pertencem e que já não é apenas Ocidental. A China é hoje um
dos grandes investidores na África do Sul (como em muitos outros países
africanos). Pretória ignorou os sucessivos pedidos de visto do Dalai
Lama, muito mais próximo da humanidade de Mandela do que o
vice-Presidente chinês. A realpolitik sobrevive.
3. David Cameron chegou mais cedo porque, nas suas
próprias palavras, não queria perder nem um minuto da cerimónia. O líder
britânico não anda na sua melhor forma e tinha a espinhosa missão de
representar o colonizador. A triste ausência da Europa foi também uma
das imagens da celebração ao “melhor de nós todos”. Estavam lá as suas
cabeças coroadas a quem ninguém ligou particular importância. Estavam
também os líderes das suas instituições e de muitos dos seus países. E,
no entanto, a ausência da Europa foi indisfarçável. O seu lugar neste
novo mundo ainda está por definir. François Hollande e Nicolas Sarkozy
conversaram longamente (porventura sobre a tarefa impossível de governar
a França ou de responder aos massacres africanos). O Presidente francês
devia ter partido hoje directamente para Bangui, a capital da República
Centro-Africana, mergulhada numa guerra fratricida e onde 1600 soldados
franceses tentam colocar alguma ordem, às ordens das Nações Unidas e
sem grande ajuda dos seus parceiros europeus. A França é assim e ainda
bem. Também em 1992 François Mitterrand partiu inesperadamente para
Sarajevo no final de uma cimeira europeia. Foi o primeiro líder a
quebrar o cerco à cidade mártir da guerra dos Balcãs e a dizer aos
sérvios que o seu mais forte aliado na Europa tinha perdido a paciência.
Se o Presidente alemão estava lá, ninguém o viu. Pelo contrário, a
ausência de Angela Merkel foi de uma enorme visibilidade. Talvez também
porque a Europa ainda arrasta consigo “o fardo do homem branco”, nenhum
líder europeu teve direito a discursar. Hoje a Europa, com todo o seu
poder económico, vê a sua influência posta em causa pela China e pelo
Brasil. Virada para dentro, vergada por uma crise que ninguém, fora das
suas fronteiras, consegue compreender, não consegue ver a oportunidade
de comprometer-se com esse mundo novo que encontrou o seu herói num
homem que nasceu em África e que aprendeu o valor da dignidade, da
liberdade e da democracia numa cela onde passou 27 anos. De Klerk
percebeu que o fim da Guerra Fria apenas reforçaria o “cordão sanitário”
que tinha sido criado à volta do seu país. Também ele esteve à altura
do momento que a História lhe reservou. Hoje, foi mais aplaudido do que o
próprio Presidente Zuma. Hoje, o mundo viveu um dia de esperança. Sem
isso, lembrou Obama, a política é irrelevante.
In: http://www.publico.pt/mundo/noticia/um-homem-pode-mudar-o-curso-da-historia-pode-1615830
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