In PÚBLICO, 16/11/2014
1. Voltaram, há dias, a interrogar-me, em tom de exame e desafio: se
existe um só Deus – segundo o credo monoteísta – porque não se unem numa
mesma religião judeus, cristãos e muçulmanos? Presume-se que Deus não
possa estar em concorrência consigo mesmo.
Como qualquer cristão, tenho de estar pronto a
dar razão da minha esperança, com mansidão e sem arrogância, como
recomendou S. Pedro (1Pr 3,15), mas não estou obrigado a ser ingénuo. A
pergunta não abriga apenas pouca informação acerca da longa história dos
chamados monoteísmos. Recomendo, no entanto, La bibliotheque de Dieu: Coran Evangile, Torah (1).
É uma biblioteca escrita e comentada por humanos durante muitos
séculos. Nem sempre tem ajudado a pensar e a viver a aventura humana com
esperança. A sua leitura fundamentalista foi e continua a ser usada,
com demasiada frequência, para matar em nome de Deus. A teologia do diabo
exige o recurso permanente ao poder económico, político e religioso
(Lc.4,1-13). Os seres humanos sabem que sem poder bélico e o seu
comércio, as guerras perderiam o encanto das conquistas.
Dito isto, parece-me um abuso responsabilizar a divindade pelas
configurações sociais das religiões, mesmo quando algumas gostem de
exibir essa pretensão. Deus não é hindu, judeu, budista, cristão,
maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos fundadores
dessas religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.
As
explicações sobre a origem da religião estão confrontadas com um facto
evidente: tanto o sentimento religioso como as suas múltiplas expressões
têm um passado e um presente nos diversos povos e culturas. Podemos
estudar as suas metamorfoses, recomposições e migrações, com ritmos
diferentes de continente para continente, de país para país e mesmo
dentro da mesma área cultural. Apesar de todos os fluxos de ateísmo,
agnosticismo e indiferença religiosa, as previsões do seu apagamento
definitivo estão cansadas.
Aquelas religiões que pretendem
fundar-se em revelações divinas - e procuram justificá-las a partir dos
seus textos fundadores - não têm a vida mais facilitada do que aquelas
que as reduzem a fenómenos humanos de relação com o Transcendente. Os
dois caminhos não se excluem.
2. Os seres humanos
vivem no labirinto dos desejos, conscientes ou inconscientes,
confrontados com enigmas e mistérios quer da natureza quer da sociedade.
Como não se resignam à simplicidade de animais domesticados, têm de
procurar o sentido e as formas culturais de viver como humanos, isto é,
com dignidade e em instituições justas. A atitude religiosa
desenvolve-se numa atmosfera de atenção “à importância misteriosa de
existir” (F. Pessoa) e à necessidade de ter um eixo no qual tudo se
religa.
O pluralismo religioso é irredutível, mas se uma religião
tiver a pretensão de ser a única verdadeira, divinamente garantida e que
fora dela não há salvação, ficam todas sob ameaça ideológica de
perseguição religiosa. Consentir na liberdade religiosa
seria dar espaço ao erro e à sua nefasta difusão. O raciocínio é
simples: apenas a verdade tem direitos; a nossa religião é a única
verdadeira; as outras vivem e fazem viver no erro, logo não têm direito a
existir.
Na Igreja Católica também se alimentou essa posição
assassina ao ignorar que só as pessoas são sujeito de direitos. A
Declaração “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa só foi
assinada, depois de várias formulações, no dia 7 de Dezembro de 1965,
isto é, na conclusão do Concílio Vaticano II! Hoje, é a nossa glória e
uma responsabilidade: fora do diálogo inter-religioso não há salvação.
Diálogo
não pode ser um faz de conta. É um processo no qual os parceiros vão
mudando, passando da hostilidade e da indiferença à mútua hospitalidade.
Para derrubar as muralhas construídas ao longo dos séculos e construir
pontes entre as religiões é preciso destruir os muros edificados nas
mentalidades e nos afectos dos crentes.
3. Paulo
VI, na mensagem de Paz para 1971, não podia ser mais incisivo – repete,
com uma voz nova que sai da nossa consciência civil, a declaração dos
direitos humanos: “todos os homens nascem livres e iguais na dignidade e
nos direitos, são todos dotados de razão e de consciência e devem
comportar-se, uns com os outros, como irmãos”. A doutrina da civilização chegou até aqui. Não voltemos para trás.
Esta
declaração generosa dos Estados, depois de duas guerras estúpidas e
monstruosas, ainda não era a voz de todos os povos, mas era o eco do
Evangelho: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8) e com o método de aplicação
da regra de oiro: “faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem” (Mt 7, 12).
Se a doutrina da civilização chegou até aqui, como afirma Paulo VI, voltar atrás não seria regressar à barbárie?
1) Cf. ver. “Lumière & Vie”, nº 255, 2002
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